Toda literatura é uma longa carta

Nesta semana lemos em classe um conjunto de deliciosas cartas cuja controversa autoria é atribuída à Sóror Mariana Alcoforado. Essas cartas vieram a público em 1969 em Paris, em um livro intitulado Lettres portugais traduites en français, publicado por Claude Barbin. Eram cinco cartas, escritas por uma freira portuguesa a um oficial do exército francês. Não se sabia o nome da freira, o nome do oficial, nem o nome de quem tornara as cartas públicas. Esse mistério, além do tom excitante das cartas, seria responsável pelo extraordinário sucesso do livro. Encontrei na internet o livro em português em formato digital na Biblioteca do Alentejo, conforme link abaixo:

http://www.bdalentejo.net/BDAObra/BDADigital/Obra.aspx?id=278#

Alguns autores acreditam na autoria da Sóror Mariana Alcoforado, pois de fato existiu uma religiosa chamada Mariana Alcoforado, nascida em 1640, e que viveu no convento da Conceição de Beja, em Portugal. As cartas podem ter sido escritas durante o período das guerras de Restauração entre Portugal e Espanha, quando Mariana teria conhecido o Marquês de Chamilly. Chamilly chegou em Portugal em 1663, como capitão de cavalaria das tropas francesas que foram em auxílio de Portugal contra os Espanhóis.

Por outro lado, há autores que acreditam que a versão de uma portuguesa religiosa apaixonada por um Marquês são falsas. Jean-Jacques Rousseau achava as cartas belas demais para serem idealizadas por uma mulher, negando-lhe a autenticidade.

Interessante notar como um filósofo do período do iluminismo pensava: uma boa literatura não pode ser fruto do trabalho de uma mulher. Mas, menos interessante é perceber que, após mais de 300 anos, essa conotação de inferioridade da mulher é algo ainda latente: em todo o mundo as mulheres recebem um salário inferior, sob a justificativa de que a mulher não tem a mesma garra para enfrentar os desafios do cotidiano como os homens.

Incentivada pela ideia de encontrar outras cartas escritas por mulheres, porém japonesas (afinal sou da habilitação de língua japonesa), me embrenhei na internet para encontrar cartas de amor. Mas, infelizmente, não encontrei tais cartas. O que encontrei foram inúmeras referências a cartas escritas por combatentes japoneses a seus parentes durante a guerra.

Uma dessas cartas de um kamikaze me chamou a atenção, tanto pela beleza como está escrita, quanto pelo conteúdo.

Os kamikazes, literalmente “Deuses do vento”, foram utilizados na Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), em uma ação suicida contra os navios de guerra inimigos, principalmente contra os Estados Unidos. Aviões de caça do tipo Zero, armados com uma única bomba de 250 quilos, se chocariam contra navios inimigos. A ousadia e o poder destruidor do ataque seriam fatais. No dia 25 de outubro de 1944, na Batalha do Golfo de Leyte, foram relatados os primeiros ataques da Força de Ataque Especial (Tokkotai, ou Esquadrão kamikaze).

Dizem que o sucesso dos kamikazes era muito baixo. Os aviões levantavam vôo sem o combustível suficiente para o retorno à base. Muitas aeronaves eram abatidas durante o ataque, e para garantir que o avião atingisse o alvo, o piloto tinha partes do corpo amarradas ao manche para que a aeronave não desviasse do alvo, caso o piloto fosse morto antes do impacto.

Os 2.198 pilotos que jogaram seus aviões contra os inimigos eram todos voluntários; a lista de candidatos a kamikaze foi sempre maior do que o número de aviões disponíveis. O avião Zero possuía uma maneabilidade muito boa, mas não em velocidades maiores, pois o manche ficava extremamente pesado, então se o piloto kamikaze tentasse um mergulho direto, seria quase impossível acertar o alvo. A tática era voar baixo, rente a água, esquivando-se do fogo inimigo para atingir o alvo.

Na última noite antes dos ataques, os pilotos escreviam cartas para seus parentes. No dia seguinte, ao amanhecer, a esquadrilha se reunia no campo, tomavam uma última dose de saque, fumavam um cigarro e partiam para o ataque final. No momento da decolagem os pilotos vestiam na testa uma faixa de algodão branco desenhos de vários significados e levavam uma espada, igual a que os samurais usavam em batalha para avisar que estavam dispostos a morrer pela honra. Nas fotografias da época é possível ver o sorriso sereno dos jovens a caminho da morte.

Uma dessas cartas, traduzida abaixo, é de Uemura Naohisa (植村眞久), um piloto da aeronave Zero. Nascido em Tóquio, participou do primeiro grupo de ataque suicida. Teria morrido no mar, no Estreito de Segao, e foi promovido a capitão após a morte. Ele tinha apenas 25 anos na idade. A carta é endereçada à filha, que na época tinha apenas 3 meses de idade. Eu alterei um pouco o conteúdo da tradução na esperança de mostrar um pouco da delicadeza que a carta transmite, já que é uma carta endereçada a uma criança.

 

=========================

Motoko-chan (nome da filha),

Já houve uma vez em que você olhou para mim e meu deu um sorriso, viu? Houve também um tempo em que você adormeceu  em meus braços, e também tomamos banho juntos de ofurô.

Quando você crescer, talvez queira saber um pouco mais sobre o mim. Então, pergunte à mamãe e à tia Kayo-san sobre o papai.

Eu deixei em casa um álbum de fotos minhas especialmente para você.

Eu que escolhi o nome de Motoko-chan. Escolhi este nome desejando que você se tornasse uma pessoa de um imenso coração gentil e carinhoso.

Quero te ver feliz quando você crescer e se tornar uma noiva. E mesmo que eu morra sem você me conhecer, por favor, de forma alguma se sinta triste.

Quando você crescer e quiser se encontrar com papai, venha me visitar no tempo Kyuudann (九段 – templo de adoração àqueles que se foram).

E, se você sentir uma profunda angústia pela minha ausência, então verá meu rosto flutuando dentro do seu coração.

Eu tenho certeza de que você será uma pessoa plenamente feliz.

Quando você nasceu, as pessoas costumavam dizer que você era muito parecida comigo. Ao olhar para você, diziam que era o meu rosto que estavam vendo.

O seu tio e a sua tia vão cuidar muito bem de você, assim como a sua mãe,  que irá cuidar de você durante toda a sua vida.

Mesmo que algo aconteça comigo, não quero que sinta que é uma criança sem pai. Estarei sempre te protegendo.

Por favor, seja sempre uma pessoa boa com os outros.

Quando você crescer e começar a pensar em mim, por favor, leia esta carta.

Showa ano 19.

Do papai para Motoko-chan

P.S.: Talvez você não saiba, mas tenho carregado em meu avião a boneca que você ganhou quando nasceu. É o meu amuleto. Isso significa que você está sempre ao meu lado, viu?

=================

(Foto de Uemura Naohisa e sua filha Motoko)

Abaixo deixei o texto original em japonês. Se alguém souber ler, vai perceber como a carta é singela e tocante.

========
素子へ

素子は私の顔を
よく見て笑いましたよ。
私の腕の中で眠りもしたし、
またお風呂に入ったこともありました。

素子が大きくなって
私のことが知りたい時は、
お前のお母さん、
佳代叔母様に
私のことをよくお聞きなさい。

私の写真帳も
お前のために
家に残してあります。

素子という名前は
私がつけたのです。
素直な、心の優しい、
思いやりの深い人に
なるようにと思って、
お父様が考えたのです。

私はお前が大きくなって、
立派なお嫁さんになって、
幸せになったのを
見届けたいのですが、
もしお前が
私を見知らぬまま死んでしまっても、
けっして悲しんではなりません。

お前が大きくなって、
父に会いたいときは
九段にいらっしゃい。

そして心に深く念ずれば、
必ずお父様のお顔が
お前の心の中に浮かびますよ。

父はお前が幸福者と思います。
生まれながらにして
父に生き写しだし、
他の人々も
素子ちゃんをみると
真久さんにあっている様な気がすると
よく申されていた。

またお前の伯父様、叔母様は、
お前を唯一の希望にして
お前を可愛がって下さるし、
お母さんもまた、
御自分の全生涯をかけて
ただただ素子の幸福をのみ
念じて生き抜いて下さるのです。

必ず私に万一のことがあっても
親無し児などと思ってはなりません。
父は常に素子の身辺を護っております。
優しくて人に可愛がられる人になって下さい。

お前が大きくなって
私のことを考え始めたときに、
この便りを読んで貰いなさい。

昭和十九年○月某日 父
植村素子へ

追伸
素子が生まれた時
おもちゃにしていた人形は、
お父さんが頂いて
自分の飛行機にお守りにして居ります。
だから素子は
お父さんと一緒にいたわけです。
素子が知らずにいると困りますから
教えて上げます。

=======

(Foto da carta de Uemura Naohisa)

Deixe um comentário